The Mortyology of Spirick
1.
Acreditava que Community era melhor que Rick e Morty, mas estava enganado. Community exibe o procedimento nu, no primeiro plano. Rick e Morty faz uso mais discreto, pois seu objetivo é mais contar uma história. Eem uma boa história, convém o recato da forma.
Escrevi isso e logo em seguida comecei a assistir o s4e4 de Rick e Morty, em que o procedimento está nuzinho da silva.
— Por que não conseguimos encontrar o mecanismo [para parar o trem]?
— Isso não é um trem real. É um procedimento narrativo, literalmente. Um procedimento literário literal que, literalmente, metaforicamente, contém a nós dois.
— Uma simulação.
— Pior. Uma antologia.
(diálogo entre Rick e Morty)
Que episódio genial! Ali, eles chegam a mostrar uma imagem do Harmon circle story, como se estivessem tentando escapar não de um trem infinito, mas do próprio procedimento de Dan Harmon!
O esquema é o seguinte, e me foi apresentado pelo @caiquecabarroz:
Quando Rick e Morty encontram o mapa, veem que estão no ponto 4 do trem, o momento em que enfim se adaptam à situação não-familiar. Tendo em mãos a estrutura da história, os personagens podem então compreender o seu destino.
— Nós precisamos sair do trem?
— Nós não precisamos fazer nada, Morty, isso é apenas um guia estrutural, nós obviamente vamos impor o nosso estilo.
— Eu não gosto o quão meta isso aqui está ficando, Rick.
(outro diálogo)
Os personagens dão de encontro com o procedimento que estrutura ao enredo . Assim, Harmon escreve com o procedimento e também sobre o procedimento. Dito de outro modo, a mimisis é uma mimesis da forma, i.e., o objeto que lhe serve de modelo é também o seu próprio meio de constituição.
Quando atravessam ao ponto 6, chega a hora de pagarem caro por terem descoberto o enredo da história. É o momento em que, segundo o procedimento, ocorre uma nova reviravolta na trama, e os personagens perdem o controle da situação. No caso do episódio, essa perda de controle é representada pela aparição de um outro procedimento, diverso do Harmon Story Cicle. Ou seja, nesse momento o filho da puta do Dan Harmon insere um outro procedimento bem no meio de seu procedimento! Começa-se então a escrever-se uma outra história, em um outro formato.
Diga-se da passagem, esse foi o mesmo truque que Borges utilizou ao escrever críticas literárias sobre obras que não existem: escrever apenas o procedimento, sem escrever a obra. Para isso, utiliza-se de gêneros prontos. Harmon fez uso de seriados feministas; Borges, do modelo dado pelos herméticos romances de Joyce.
As pessoas discutem a distinção entre sátira e paródia. No caso de Borges e Harmon, a sátira claramente predomina, pois o seu procedimento absorve e encena o procedimento alheio (em caso de paródia, ocorreria o contrario, e o procedimento vestiria-se com as formas do outro). É bom esclarecer que o procedimento de Harmon, no caso, está satirizando ao procedimento de Borges, pois o encena dentro de seu enredo. No mapa, é o ponto em que passamos do 6 para o 7.
No fim do episódio, Harmon permanece literal, e insere Jesus e a metafísica para resolver tudo: No fim aparece (literalmente) o fim; tudo revela-se uma teleologia, com início, meio e fim. (Se examinarmos no mapa, veremos que atravessamos todo o ponto 8 e que chegamos novamente no ponto 1).
Tudo está bem quando acaba bem. Chegada a história ao seu fim, uma outra igualzinha pode começar. O procedimento então volta ao início, pronto para ser mais uma vez utilizado. Afinal, estamos em uma antologia. Quando percebermos isso, o curto-circuito será dado, e a realidade enfim cederá.
2.
O idealismo e o materialismo são a mesma face de uma mesma moeda. O idealismo corresponde a examinarmos os contornos do mapa. O materialismo, a andarmos por dentro dele, seguindo o caminho de seu traçado.
Isso foi vulgarmente tratado como ideologia, mas ideologia, para os hegelianos, é uma coisa muitíssimo diferente (de modo breve, a ideologia é produto da não-percepção do espírito). Juntando a terminologia hegeliana com o conceito marxista, a ideologia pode ser considerada como produto de um discurso que percebe o espírito, mas que não enxerga as implicações objetivas de sua percepção, permanecendo alienado em seu êxtase contemplativo desinteressado. Essa é a contradição de Kant, que ignora as implicações revolucionárias de sua própria estética ao subtrair dela o fim ético que há em sua filosofia. (Brecht, um outro alemão, percebeu a confusão de Kant e fez da práxis estética o fundamento de seu teatro).
Dan Harmon têm em vista a crítica da ideologia. Por isso que, quando os personagens enfim fogem do trem do procedimento, segue-se um incômodo e debochado discurso de Rick em defesa do consumismo: “A solução é sempre comprar mais!”, repete várias vezes.
Claro que é uma sátira. Harmon zomba do discurso mercantil, que reduz a multiplicidade do não-sentido para dentro do estreito sentido capitalista. “Comprem, a função da sociedade é comprar!”, diz Rick, denunciando a ética burguesa como ideológica, alienada.
A ética burguesa não é capaz de compreender o esquema total (no caso, estamos empregando o materialismo dialético). Ela não percebe que comprar não deveria ser um fim em si: o fim deve ser ético. Deve, portanto, servir à vida.
Dito isso, me pergunto se a crítica de Harmon não se torna estéril. Ri da ideologia, caga em cima dela, mas faz isso de dentro do sistema. É mais uma peça da máquina, mais um dispositivo do procedimento. De dentro da indústria cultural, Rick diz pra a gente: “comprem, comprem”.
Isso quer dizer que a indústria cultural é fadada a ser ideológica? Bom, é, assim como toda e qualquer cultura em algum nível também o é. Existem brechas, no entanto. Em Rick e Morty, por exemplo, o mapa poderia não ser o procedimento, mas o materialismo dialético. Entrando o procedimento do social dentro do procedimento da obra, o curto-circuito seria iniciado (a realidade iria começar a ceder).
3.
Chegamos portanto na conclusão de que o revolucionário, em arte, é a auto-destruição do espírito (i.e., do procedimento que produz a percepção). Se em Rick e Morty o procedimento não tivesse dado mais uma vez no procedimento, mas no materialismo dialético, um curto teria ocorrido, e o procedimento do espírito tornar-se-ia revolucionariamente materialista. Se tudo corresse bem, cairíamos para fora da ideologia, e nos encontraríamos perplexos, diante do mundo real.
Posto nessa perspectiva, revolucionária é a arte que conseguir fazer o jogo da forma — a produção do não-sentido — mas sem abrir mão do princípio do materialismo dialético.
A forma, assim como a arte, são instituições burguesas que datam pelo menos do século XIX. Sua formulação mais complexa, que indicou o seu ponto de esgotamento e crise, foram os cenáculos formalistas que se formaram ao fim do mesmo século. Ali, a arte tornou-se um fim em si mesmo (a forma é o procedimento esvaziado, autocontemplativo).
A indústria cultural surge da caricatura da art pour l’art: o que importa é a eficácia do procedimento, que deve ser capaz de produzir histórias serialmente, para assim atender a demanda do mercado. Percebe-se então uma alienação da forma, que submete o seu uso para a produção de um único procedimento. A arte, portanto, se põe à serviço da ideologia burguesa, desfazendo a produção do não-sentido e atendendo à lógica do mercado.