um campeador paulista
nascido no meio de moinhos, dos campos de trigo, dos currais, vivendo bem a vida de um povoador, de um pioneiro, acampado entre a barbaria e o desconforto do deserto,
na rústica vivenda, mais que primitiva, coberta de sapé, com cinco portas de couce, duas fechaduras, assoalhada a sala, coberta de capim, tudo ladeado de um florido pomar de laranjeiras, pessegueiros e figueiras.
fui subitamente arruinado por motivos que, taciturno, calo,
e fugindo ao vexame da ruína de minha própria terra, desci-me para me afazendar em paragens longínquas.
as forças sobre-correntes, imprevistas como as que perdem odisseu, me desviam para rumos mais pérfidos e sedutores.
me perco por dinheiro e pratico o esporte guerreiro contra os bugres, seja em praias diante do mar, seja livre nas florestas, seja aldeado nas reduções jesuíticas.
meu sangue é de gente atrevida, belicosa y sen ley: sou predador, o bárbaro invasor de aldeias dos freis espanhóis, que mata e pilha indiferentemente tesouros e pessoas.
mesopotâmia argentina, fertilíssima terra compreendida entre o rio paraná e o uruguai: me espere ainda como destino prometido por minha natureza, por meu instinto, por meu gosto pelo trato com gado e cavalo, porque pelo rumor do ouro de cataguazes me tardo.
nômade ave de rapina, traio a herança do gado e do cavalo, interrompo meu instinto de sertanista e me movimento sem trégua para as minas.
chego tarde, em vez de ouro encontro a fome. rápido, me adapto, faço o mosquete que matava bugre e padre de pederneira, tomo a lança e o laço, liberto-me da bota grossa e ferrada, que pisa a dureza dos garimpos e calço as esporas do campeador de cavalos.
parto para nova viagem, elemento instável e transitório, nômade aventureiro predador de rebanhos estradando a latitude das savanas com foice nesta mão e espada naquela.
encontro tribos selvagens belicosas desde as paragens lacustres da costa até às coxilhas e planícies do vale uruguaio faço de rude escola para o fastígio de minha vitalidade.
mato bugre com gosto, cara a cara, violento, estúpido, injusto, mas nunca covarde. democrático, mato todos como iguais: charruas, minuanos e tapes. másculo entre másculo, me alivio em suas fêmeas de descarte. me agrada a visão de seios nus, a vulva sem penugem e a discreta variedade do fruto selvagem: botocudos, carijós, canes, arachanés e guaianazes.
morro de tiro de arco e flecha, arma menos rústica que meus sentimentos, que me derruba do cavalo e, no traumatismo da queda, a morte chega e me leva.
um vastíssimo percurso tive em terra. agora, diante do juiz, não sei se me reserva as pradarias do céu ou os garimpos do inferno.